É possível dizer, por mais que seja óbvio fazê-lo, que o fim da escravidão nas Américas sacramentou o mesmo destino para todos os negros. O Estado acabou com o sistema escravista e, desse modo, mudou-se a lógica econômica, a dinâmica do cotidiano, mas não as bases da sociedade. O negro, com o fim do sistema escravista, continuou uma incógnita, continuou vilipendiado e excluído da lógica social e da política de Estado. Nesse contexto, destaca-se a importância das pequenas resistências: o não rompimento com a cultura de raiz africana, fenômeno que foi um meio fundamental de sobrevivência no cotidiano desumano da escravidão, que resultou na ascensão de um novo tipo de sonoridade.
As reminiscências da lógica escravista determinaram que o papel das mulheres ainda estava reservado a casa-grande. O trabalho possível, agora como mão de obra assalariada, continuava sendo o serviço doméstico e o de babá. Uma outra possibilidade era se sujeitar à prostituição como, por exemplo, fazia Bessie Smith, um dos primeiros nomes femininos do mundo do blues.
A força cultural se fazia presente em diversos âmbitos. Seja na colheita de algodão, de café ou de outra especiaria em que a música de trabalho ditava o ritmo do serviço ou até como forma de fugir do trabalho pesado, aprendendo um instrumento musical e se tornando parte da casa-grande e das festividades como banda. Entre continuidades e rupturas ao longo do tempo que permitiram as modificações musicais, elementos da música negra e europeia se fundiam, e combinados com a falta de educação musical dos escravos, criou-se um estilo de música puramente baseado no instinto, na improvisação e combinação de elementos. Assim nascia o jazz.
Além de Bessie Smith, outra figura feminina emergiu, sobrevivendo ao sistema que não fora criado para elas: mulheres e negras. Billie Holiday, a carinhosamente chamada Lady Day, ditou o tom da discriminação e exclusão social com sua voz rouca, firme e penetrante, ao cantar pela primeira vez Strange Fruit, a primeira canção de protesto para o movimento negro. A canção, escrita por um jornalista judeu, Abel Meeropol, tem como plano de fundo o linchamento de um homem negro, fato tão corriqueiro à época, injustamente acusado de estupro. A canção decretou o início de duas jornadas para Holiday: de um lado haviam aqueles que a adoravam justamente por essa música, adoravam o clima em torno dela – a meia luz, um refletor sobre o microfone, o silêncio fúnebre da plateia, a conclusão sempre avassaladora. Por outro lado, havia quem odiava a canção: a letra sobre o sofrimento, sobre a morte, sobre o racismo que encerrava o destino do povo negro.
O sentimento de aversão que a letra da canção desperta tem sentido até os dias de hoje. O significado da música ressoa tal qual a última nota cantada por Lady Day que nos dá a sensação exata de um corpo negro caindo. Esse corpo negro que até hoje ainda cai diante de um sistema que continua excludente e racista. O corpo da mulher negra ainda cai diante do patriarcado a cada ato de feminicídio. Diante dessa sociedade o corpo negro continua sendo visto como um fruto estranho, mas continuamos lutando para que não cortem nossas raízes.
*Lucas de Oliveira do Nascimento encontra-se no 7º período do curso de História na UFRJ e no início do desenvolvimento da sua pesquisa monográfica sobre a formação do jazz nos Estados Unidos e mulheres negras que fizeram parte desse processo. Possui interesse pelas áreas de História da Música, História do Movimento Negro e História Contemporânea.
コメント