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Reflexões sobre a nova normalidade do mundo Pós-Coronavírus


Fotografia: Murilo Salazar

A nova normalidade que o Coronavírus nos impôs enquanto indivíduos inseridos em uma sociedade permitiu a queda das cortinas e o escancarar das lacunas que ainda persistem na humanidade. A fragilidade do sistema econômico, a desigualdade social latente no trato das questões trabalhistas, o sucateamento do sistema público de saúde casado com o negacionismo científico e a necropolítica são algumas das questões que seguem em aberto no debate.


O Covid-19 trouxe consigo a percepção concreta de que a maneira como os Estados se organizam no enfrentamento de uma epidemia gera um impacto que vai muito além dos limites territoriais desses países. Conforme aponta Yuval Noah Harari, a propagação de um vírus não deve ser restrita ao dano que causa em um determinado grupo, mas sim na situação de risco que a espécie humana se encontra diante dessa circunstância. Nesse sentido, faz-se necessário pensar o papel estrutural do Estado em promover condições de vida dignas para a sobrevivência da humanidade no atual contexto.


No início da expansão da pandemia, mais especificamente quando o Coronavírus chegou na Itália provocando um estrago inimaginável num país de primeiro mundo, o discurso de solidariedade universal ganhou espaço. Dentro disso, a ONU propôs em abril de 2020 uma medida de cooperação entre os países na busca de alternativas para lidar com o Coronavírus durante uma Assembleia Geral, como a produção de medicamentos e a venda de equipamentos; além do compartilhamento de informações científicas. Tanto o Brasil quanto os Estados Unidos estão entre os países que não participaram da medida, sendo as nações que têm a frente de seus governos presidentes negacionistas que recusam a importância da ciência e vendem para seus seguidores uma falsa noção da realidade.


A partir disso, a disputa de narrativas sobre a nova conformação da vida trazida pelo Coronavírus invadiu a Medicina. A infodemia facilitada pelas mídias sociais, onde é possível

encontrar formas de prevenção falsas para o vírus, além de curas milagrosas consolida o fenômeno do negacionismo, que busca a todo custo questionar a ciência invalidando aquilo que não é de sua compreensão. Essa realidade é agravada pelo discurso de governantes como Donald Trump, que recomendou publicamente a ingestão de desinfetantes como profilaxia ao vírus. A suposta “orientação” do presidente estadunidense gerou uma notificação de 30 casos de consumo desses produtos pela Departamento de Saúde de Nova York, divulgado pela NY Daily News. Curiosamente, os Estados Unidos seguem como a liderança no número de mortes na quinzena de maio de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins.


Ainda tratando sobre a debilidade da solidariedade universal, é fundamental destacar que o Coronavírus não atinge a todos os grupos da mesma maneira. A condição a qual estão submetidos trabalhadores impossibilitados de vivenciar a “new experience” do “home office”, já que muitos estão submetidos à terceirização das relações de trabalho, ao discurso neoliberal falacioso do “sentimento de dono”, além dos olhos fechados para a situação das favelas e a forma como o Coronavírus chega no público negro e pobre. Esses olhos fechados fazem recordar o discurso do ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta no final de março, que afirmou ser um “enigma” a condição das favelas na disseminação do vírus. Esse “enigma” até seria possível se não houvesse extensos estudos e estudiosos na área das Ciências Humanas perfeitamente aptos a apresentar dados sobre qual é a realidade dessas localidades.


Portanto, é de extrema importância refletir sobre quais são as nossas próprias responsabilidades enquanto humanidade na nossa destruição. Apesar de na História a experiência de pandemias ser encontrada em diferentes momentos, como a própria Peste Negra no século XIV e a Gripe Espanhola em 1918, o que nos distancia dessas duas realidades é o abismo de avanço científico e tecnológico que temos entre esses contextos e o atual Coronavírus. Além do isolamento, um ponto-chave apontado por Harari é a informação, o conhecimento, a credibilidade do saber científico. Vale ressaltar que a recusa da ciência é uma escolha feita para a consolidação da necropolítica do governo em estabelecer, como aponta Mbembe, quem vive e quem morre.


A pandemia do Coronavírus nos colocou diante da instabilidade do emprego na sociedade, da violência doméstica que aumentou drasticamente durante o isolamento social, da vulnerabilidade do sistema econômico, dos limites do nosso egoísmo, da vida de consumir para compensar o vazio, da importância da arte e da cultura em tempos de crise. Não há sentimento de gratidão pelo vírus, mas sim uma necessidade profunda de reflexão sobre a maneira como vivemos. Compreender que o ser humano existe e que necessariamente compõe um corpo social, onde as relações e as reações ao mundo influenciam diretamente no bem-estar coletivo, abrindo mão do individualismo inerente ao mundo capitalista deverão ser as temáticas para repensar o amanhã que o Covid-19 nos deixará.


Fontes citadas no texto:


Bruna Aguiar é historiadora em formação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Atuou como monitora bolsista na área de Psicologia da Educação e da Aprendizagem na Faculdade de Educação da UFRJ (FE/UFRJ) e atualmente pesquisa sobre a História da Loucura, Psiquiatria e Higiene Mental no Brasil. Suas áreas de interesse são História da Loucura, História da Saúde no Brasil, História dos saberes médicos e psicológicos e História do Estado democrático de direito.



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