top of page
  • Foto do escritorOutrora

Historiografia e Perspectiva Africana: Um comentário.

Nos últimos anos, muitos foram os trabalhos que se propuseram a analisar os processos pelos quais a África foi inventada. Isto é, refletem e questionam as ideias e representações criadas sobre este continente, seja de modo interno, mas, sobretudo, externo. Pensar as ideias e as representações que circundam essa região do globo é compreender as disputas políticas, sociais e identitárias que mobilizam e mobilizaram os indivíduos.


Longo foi o tempo em que a História da África foi escrita em contraponto à História Europeia. De acordo com o economista guineense Carlos Lopes, em seu artigo “A pirâmide invertida – historiografia africana feita por africanos” (1995), esse processo se deu por meio de duas facetas distintas: uma com relação à “inferioridade africana”; a outra, à “superioridade africana”. Comecemos pela primeira: como atestado pelo filósofo congolês V. Y. Mudimbe, em seu livro A Invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento (2013), a inferioridade africana é uma invenção que se valeu da criação inescrupulosa de mitos racistas e etnocêntricos para ser validada.


Por conseguinte, Lopes sustenta que a “inferioridade africana” teria sido o primeiro momento de uma produção historiográfica feita sobre o continente africano. Imbuída de uma perspectiva eurocêntrica, prezava pelo protagonismo externo, centrava-se em projetos políticos coloniais e desfigurava a História da África à medida que menosprezava os valores, a agência e o patrimônio cultural dos povos africanos. Aqui, buscou-se inventar uma África na qual não havia história antes do processo da colonização, tendo em vista que o olhar lançado pelos escritores desta corrente era carregado de simbolismo e inferioridade, cegos pela crença de que o continente africano não poderia, de forma alguma, produzir conhecimento por si só.


Por outro lado, a “superioridade africana”, enquanto tendência historiográfica imposta pela geração de historiadores de Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo — a partir da ótica de Lopes — buscou desmentir a afirmação segundo a qual a África não era detentora de um passado ou o era apenas de um passado sem interesse. A historiografia africana que se constituía na segunda metade do século XX, acompanhando os processos de luta por libertação na África, buscava acertar as contas com a literatura histórica anterior, desnudando seus preconceitos, extirpando seus mitos coloniais e atendendo às novas demandas políticas de suas sociedades recém-independentes, exemplificando a interdependência existente entre a História e o domínio político.


Essa nova tendência historiográfica, protagonizada por intelectuais africanos — que que estavam, em sua maioria, envolvidos na política institucional — compreendeu que tanto os métodos analíticos quanto a forma pela qual a História havia sido contada até então demandavam uma urgente revisão. Como parte desse processo, buscou-se adotar uma “perspectiva africana”, ou seja, uma abordagem metodológica que se voltasse para as sociedades africanas pensando a sua agência histórica. A perspectiva africana, concebida como pedra angular dessa nova forma de escrever e pensar a História da África, é, assim, uma categoria analítica que busca modificar narrativas, reposicionar os agentes históricos da margem ao centro e, ao mesmo tempo, estender ao continente africano o direito à complexificação. Longe de análises simplistas e genéricas, a perspectiva africana é um esforço intelectual de entender que, na verdade, existem perspectivas africanas, sendo, por isso, a própria definição do conceito um campo de intensas disputas e debates.


Posteriormente, muitos autores apontaram que, ainda que bem-intencionada, essa nova forma de contar a História da África não foi capaz de romper com o embate, criado pelo colonialismo, entre o continente africano e a Europa. Paulin Hountondji, em seu artigo “Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os Estudos Africanos” (2008), nos mostra o quanto essa dicotomia pode ser prejudicial ao conhecimento que se quer e pretende produzir em África, afinal, este estaria sempre se voltando a um inimigo comum e deixando de pensar as próprias questões políticas, econômicas, sociais e culturais de seu próprio continente. Tal postura acabaria por contribuir para outra forma de se inventar a África.


É preciso reconhecer, no entanto, que a corrente intelectual pensou o continente africano por meio das ferramentas que estavam disponíveis naquele momento na academia. Em outras palavras, almejava-se lidar com uma estrutura que se quer romper, mas que também se quer fazer parte. De todo modo, é inegável que a estratégia — ainda que não tenha resolvido todos os problemas teóricos relativos aos estudos do continente africano, o que também não seria possível — balançou e tensionou as estruturas hegemônicas existentes à época, abrindo caminho para futuros pesquisadores e críticas cada vez mais profundas no meio acadêmico.



Referências Bibliográficas:


CURTIN, Philip D. Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral. In: História Geral da África, vol. 1. Metodologia e Pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010, p. 37 - 56.


HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África, conhecimento de Africanos: duas perspectivas sobre Estudos Africanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, 2008, 80: 149 - 160.


LOPES, Carlos. A Pirâmide Invertida - historiografia africana feita por africanos. In: Actas do Colóquio Construção e Ensino da História da África. Lisboa: Linopazas, 1995.


MUDIMBE, Valentin - Yves. A Invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Luanda; Ramada: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. [Introdução e Capítulo 1].






Isadora Garcia é graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante o ano de 2022, foi bolsista PROFAEX no Projeto de Extensão "Sikiliza África!". Atualmente é monitora bolsista do Departamento de História da África do Instituto de História (IH) da UFRJ e desenvolve, no âmbito do LEÁFRICA - UFRJ, pesquisas na área de História da África e relações atlânticas, com ênfase em História Intelectual oeste africana, Estudos de Gênero e Estudos da Recepção.


0 comentário
bottom of page