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Passam as pernas brancas, pretas, amarelas


Capa do álbum Luar (A Gente Precisa Ver o Luar), de Glberto Gil (1981)

Neusa Santos Souza esteve correta em "Tornar-se negro" (1983) quando indicou que o processo de encontro racial do indivíduo passa também por certa “consciência de classe”. Aquela que nos permite identificar "a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submissão a exigências, compelida a expectativas alienadas" (p. 19). Há quem diga, porém, que no Brasil racismo é coisa rara (Romanno, 2018). Sintomático ter clareza de onde parte esse discurso. Neste caso, vem mesmo do atual Presidente da República brasileira.


Hoje, 13/05, dia que foi consagrado pela historiografia nacional como "a libertação dos escravizados" por meio da assinatura da Lei Áurea, me questiono os sentidos que se alinham a isso. Negro que sou e historiador preocupado com a maior complexificação possível acerca das interpretações que tratam dos processos passados, me importa refletir sobre a interação passado-presente na elaboração de nossos discursos no tempo e no espaço – como aquele recentemente expresso em entrevista por Jair Bolsonaro. A medida que o passado forma e informa o presente e vice-versa, é necessário que a gente verifique como nossas falas, ações e interesses estão impregnados de um olhar que ainda hoje, 2019, quer aprisionar no tempo a agência e experiência de negras e negros e, assim, abafá-los de sua própria história.


Passaram-se exatos 131 anos da conhecida "abolição" e ainda há um longo caminho para que negras e negros, de fato, experimentem os diferentes sentidos que a noção de liberdade no Brasil pode evocar. Dia desses tomei um trem em Nilópolis, cidade da Baixada Fluminense onde morei por tantos anos e, conforme aponta Bezerra (2010), caracterizada “por ser uma área habitada em sua maioria por população pobre” (p. 120). A composição rumava em direção ao Centro do Rio de Janeiro. Diante de mim, só pensava em como aquele meio de transporte me remetia imediatamente aos tumbeiros dos idos novecentos. É claro, sempre levando em conta as especificidades de cada tempo-espaço, somente era capaz de reconhecer em cada rosto ali, naquele lugar, um pouco do vazio de ser que tentaram (e, pasme, tentam) impor aos negros brasileiros.


"O bonde passa cheio de pernas/ Pernas brancas pretas amarelas/ Para que tanta perna, meu Deus,/ pergunta meu coração" nos brindou Drummond em seu "Poema de sete faces" e, entre as tantas e tantos que rumavam pra seus trabalhos nas outras zonas geográficas do Rio de Janeiro, me reconheci, em grande medida, no interior daquele trem, ainda que meu destino final fosse a universidade e realidade diferente da maioria dos que ocupavam a mesma composição que eu. Naquele momento, só queria que os que se faziam meus pares tivessem consciência de quantas potencialidades e possibilidades aqueles corpos, em geral, massacrados pela dor, carregam.


Hoje, 131 anos pós-abolição, quando acordei, a primeira coisa que me veio à cabeça foi "quantas/os vão me parabenizar por essa data?" Certo é que meu objetivo profissional como historiador negro é que a narrativa oficial não seja a vencedora. Frente sua complexidade, o passado carrega incontáveis faces. No entanto, são 10h30, e já fui congratulado por quatro pessoas. Num riso tímido sem querer esboçar agradecimento, não quis esconder de ninguém minha infelicidade ao constatar que vivenciamos na pele o pós-abolição passados os mais de 130 anos do decreto da princesa regente do nosso capenga-império tupiniquim do século XIX (Schwarcz; Starling, 2015). Seguindo a lógica de que o passado constrói o presente, temos aqui indício irrefutável da nossa falência republicana, pretendida como projeto nacional e "concretizada" a partir de 1889.


Longo caminho há que se percorrer na direção da identificação racial entre nós e da real emancipação de negras e negros no Brasil. Meu desejo nesse 13/05/2019, num quotidiano pós-abolição, é que resgatemos nossas histórias e nos recriemos em nossas potencialidades (Souza, 1983). Diferente do que acha o senhor presidente do país, racismo no Brasil é a base estrutural e estruturante das relações sociais que por aqui se desenvolvem. Que nossa história não seja a história de uma princesa redentora, mas, acima de tudo, a de que "negro é lindo".


Referências Bibliográficas


BEZERRA, L. A. A família beija-flor. Dissertação de Mestrado em História—Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010.

FRAGA, W. Pós-abolição; o dia seguinte. Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

RIOS, A. M.; MATTOS, H. M. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, n. 8, p. 170–198, 2004.

ROMANNO, G. Racismo no Brasil é ‘uma coisa rara’, diz Bolsonaro a Luciana GimenezVeja, 8 maio 2019. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/maquiavel/racismo-no-brasil-e-uma-coisa-rara-diz-bolsonaro-a-luciana-gimenez/>. Acesso em: 13 maio. 2019

SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. Ela vai cair: o fim da monarquia no Brasil. In: Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 291–317.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.




Ygor Martins é historiador e professor negro em formação pelo Instituto de História da Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Membro-fundador, editor e, atual, coordenador de revisão da Revista Outrora. Bolsista de iniciação científica do Departamento de Pesquisas da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), desenvolve pesquisa sobre a história da psiquiatria brasileira, das psicoterapias no Hospital Nacional de Alienados e de trajetórias médicas. Defende a manutenção do Estado democrático de direito e é contra os cortes no Ministério da Educação.

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