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"Hoje o preto morre de violência e ainda pode se dizer que morre mais por conta da COVID-19."

Luzia Araújo formou-se na Universidade Federal do Rio de Janeiro no curso de Enfermagem e Obstetrícia; em 2019 assumiu o cargo de pró-reitora de Pessoal na mesma instituição, tornando-se a primeira mulher negra na posição. A Revista Outrora a convidou para dialogarmos sobre a pandemia e o negacionismo que a permeia, permitindo que a entrevistada traga para o debate sua experiência pessoal e profissional, seus âmbitos práticos, técnicos e teóricos.


OUTRORA: Um dos principais motes da Outrora é levar para fora dos muros da universidade os debates, não restringir aos muros da universidade alguns debates que entendemos como caros à sociedade. Nesse sentido, vimos o nome da senhora como positivo e agradecemos o seu aceite. A primeira pergunta que traçamos é para a senhora falar, nos explicar, como o negacionismo, que é uma questão tão cara para a comunidade de História, impacta na proliferação do novo Coronavírus, na prática; e se foi comum a senhora saber de relatos, dentro da área médica, de descrença e divulgação dessas maiores fake news, como a questão do termômetro, o uso da Cloroquina etc.


PRÓ-REITORA LUZIA ARAÚJO: Primeiro, eu quero agradecer o convite que vocês fizeram para que eu pudesse refletir acerca dessa temática. Eu precisei ir desde o termo negacionismo até exatamente aos questionamentos que vocês fizeram. Isso foi bastante produtivo e positivo. À medida que você vai lendo, você vai lendo mais, e é um tema que dá tesão. Então, eu preciso começar falando sobre o entendimento do que é o negacionismo. É o momento em que por escolha pessoal cada um de nós nega aquilo que é realidade. Isso pode acontecer como forma de escapar de uma verdade que é desconfortável, e hoje a verdade que temos como desconfortável são as mortes e o adoecimento pela COVID-19. Em geral, isso acontece sobre algo que queiramos afastar de nós. Pelo menos naquele momento, naquele período. E aí, a pergunta que eu fiz a mim mesma é se isso acontece por falta de compreensão das evidências conseguidas pela ciência, se tem evidências científicas que mesmo com a internet, que hoje é acessível à maioria da população, a informação produzida não consegue chegar até essa população; ou se por outros motivos. Então, é ponto inegável, é indiscutível a importância das pesquisas para a produção da ciência e também para direcionar a prática médica. As tomadas de decisões que envolvem a promoção da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico, a cura e a reabilitação desse doente. Contudo, há que se responsabilizar, também, os pesquisadores pela necessidade de além deles produzirem essas informações de forma clara e objetiva, eles conseguirem divulgar esse conhecimento, essa informação, a todos os segmentos. Isso vai ajudar na eliminação de muitas ideias que são erradas. E esse negacionismo, como vocês falaram, está presente na História Política, quando a gente tentou minimizar a história da ditadura militar. Até Hannah Arendt tem uma obra que publicou em 1971, que fala do totalitarismo, e ela entra com aquela reflexão entre fatos e ciências. Ela traz a importância de a gente pensar o que é fato e o que é ciência, para a gente ver a importância disso. A gente tem observado um negacionismo democrático. É quando diversos programas públicos não primam pela qualidade dos debates políticos e ainda pelas diversas fake news que circundam as redes sociais que envolvem a política. Então, o negacionismo como vocês colocaram estar presente na História, está presente em qualquer momento. Na ciência isto não é diferente. Na ciência, o negacionismo já é definido como a rejeição de conceitos básicos incontestáveis a favor de ideias que, por vezes, são radicais e até controversas. Isso é unanimidade em todos os governos, a relevância da ciência e tecnologia. A gente não tem que discutir sobre isso, é um fato que está posto. A ciência e a tecnologia têm uma importância indiscutível para o desenvolvimento e também para o progresso. Mentes brilhantes esperam incentivos para produzirem suas ideias inovadoras, que podem facilitar e até reduzir vários problemas que permeiam a sociedade. Financiar pesquisas, testes e formação de pesquisadores é outra via que deve ser somada. Desta forma, é de fundamental importância que o discurso de apoio à ciência se torne realidade, e no Brasil o órgão Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação é que tem discutido isso. Agora, lembrar que de 15 de outubro para cá esse ministério foi desmembrado e o Ministério da Comunicação foi separado do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. E aí vamos chegar até a pergunta número um, que é como esse negacionismo vai impactar esta prática. Com a observação dessas fake news, nos últimos meses com a pandemia da COVID-19, temos percebido como o negacionismo tem refletido na produção política e cultural da desinformação. Talvez, esse seja um caminho político. A gente está divulgando desinformação e a sociedade vem reagindo sobre isso de formas inesperadas. Aí, a gente pergunta “por que as pessoas insistem em negar a ciência?”. Porque a negativa não é de um só, a negativa é coletiva. Insistem em negar as evidências científicas. Por se tratar, hoje, de questões de saúde, o negacionismo tem forte impacto nas vidas humanas. Ora, quando eu nego a ciência, eu nego a possibilidade de eu trazer uma vida de volta à vida, de resgatar essa vida, de curar a doença. Ela está presente quando negamos a necessidade de seguir as medidas de prevenção que estão postas, por exemplo: quando vocês observam pessoas nas praias, nos bailes, em shows, clubes e sítios sem que tenha uma consciência da importância de utilizar o equipamento de proteção individual que é preconizado, como a máscara cirúrgica, sem nem pensar que o distanciamento social é de extrema relevância. O Brasil é um dos países que mais produz desinformação por fake news e isso foi apontado por um estudo realizado na USP, publicado pela Fapesp. Se deve possivelmente por ter uma educação para a ciência bem menos consolidada, e uma população com menos anos de estudo, em média. A gente sabe que grande parte, hoje, dos brasileiros não consegue chegar no ensino médio. Então, a desinformação é muito mais fácil de circular como é, por exemplo, nos Estados Unidos. A educação, na verdade, é o caminho para que as pessoas possam refletir acerca das informações que recebem, analisar essa informação, e enfim conseguirem obter um pensamento crítico, que é o que Paulo Freire falava sobre a problematização. A gente precisa trabalhar a realidade, com problemas que são da realidade, e aí dar o sustentáculo, a base, para a pessoa conseguir dizer se essas informações são verdadeiras ou não. Tem um projeto que está circulando – e esse foi até novo para mim – que é um projeto de agnotologia viral. Eu precisei ver o que era agnotologia, certo? Etimologicamente, a palavra agnotologia une duas palavras gregas. Uma é gnosis, que significa ignorância, e a outra é logia, que significa estudo. Esse estudo sobre agnotologia viral tem tentado identificar tudo que é ignorância ou desinformação sobre a negação da COVID-19 meio à pandemia no Brasil. É um estudo que acontece entre Brasil, Reino Unido e Estados Unidos, e acho que o pesquisador é o Renan Leonel, da faculdade de medicina da USP. Ele tem como objetivo apoiar projetos que são inovadores, que em meio à pandemia fazem uso de métodos de pesquisas remotas para lançar luz sobre os efeitos de curto e longo prazo da pandemia; mais uma série de questões e, principalmente, essa da desinformação que acontece por conta do negacionismo. Trata-se de um processo que é produzido socialmente e que visa a promoção deliberada da ignorância. Isso não acontece por acaso. É quando eu vejo uma informação no WhatsApp que a Cloroquina cura a doença, então vejo milhares de Cloroquinas sendo comercializadas. Acabou o estoque, alguém ganhou com isso... Nos últimos anos, Leonel, este pesquisador que está trabalhando com agnotologia, tem se dedicado a estudar, com o apoio da Fapesp, o fenômeno oposto ao da ciência, que é como os cientistas produzem conhecimento, criam processos culturais para viabilizar sua circulação, estruturam práticas coletivas de lidar com evidências científicas, e como essas informações são disseminadas na sociedade. Quer dizer, não basta que o pesquisador produza informação, ele precisa identificar qual vai ser a forma de relação com a sociedade. Quais serão as palavras que vão aproximá-lo da comunidade. E hoje a gente tem as favelas, não? Onde a gente tem uma população com baixo nível de escolaridade, sim, e que precisam saber dessas informações. É nossa obrigação identificar meios de se comunicar com essas pessoas. Hoje, todo mundo tem internet, e aí quando essas informações erradas e a desinformação chegam no WhatsApp, elas chegam tranquilas. Chegam pelo YouTube, por blogueiros, por comentaristas que são em geral convidados pela imprensa e nem sempre são pessoas que tenham uma experiência e produção de conhecimento naquela área. Reforçamos que essas mídias sociais podem assumir dois papéis: tanto forma como de informação e desinformação. Agora, tem um problema. Na desinformação, quando eu consigo a informação verdadeira e tento tornar pública, isso não acontece com a mesma rapidez. Então, eu tenho hoje que a Cloroquina foi a fake news, que não havia cura, mas quanto tempo depois isso começou a circular pela mídia? Sabemos que as redes sociais têm trabalhado, criado mecanismos de proteção de dados. E dificulta até a pessoa viralizar a informação, que é aquilo que se fazia, passava para todo mundo no corpo do WhatsApp. Agora consigo passar para cinco e, quando a informação já tem a caracterização de muito divulgada, só consigo passar para uma pessoa por vez. Então, desde a pandemia do Coronavírus na China, temos sido atacados, sim, por informações falsas que causam pânico ou negligência em relação às medidas de prevenção à COVID-19. Quando vocês perguntaram “que notícias você ouviu falar?”, por exemplo, a gente ouviu dizer que o Coronavírus é uma gripe forte, e quando a sociedade tem uma gripe forte ela não procura atendimento médico. Aliás, não conseguem ser atendidas, nem sempre, pelo Sistema Único de Saúde. Nem sempre esse sistema consegue dar conta. Uma vez que a sociedade soube que a pandemia era uma gripe forte, ela deixou de procurar. Com isso, possibilitou ainda mais a infecção de mais e mais pessoas. Tem rodado na mídia o teste caseiro para diagnosticar se eu estou ou não com Coronavírus. E aí esse teste pede para que a gente respire profundamente, prenda a respiração por mais de dez segundos e aí, se não houver tosse, a pessoa não está infectada. Havendo tosse ela está infectada. Olha só, o que tem a ver a tosse com a respiração? É uma coisa que não se relaciona, mas é claro que a gente vai explicando. Se eu estou prendendo a respiração, eu vou ter um ressecamento na minha laringe e vai produzir tosse; a garganta vai ficar irritada e eu vou acabar tossindo. E aí, teve a questão da cura pelo Coronavírus com medicamentos, por substâncias, com alimentos – até o alimento tem andado nessa roda. Não existe, hoje, medicamento responsável pela cura do Coronavírus. Não existe, também, um alimento que possa garantir a cura do Coronavírus, mas todas essas informações falsas fazem com que se retarde a busca do paciente pelo profissional de saúde, ficando cada vez mais difícil prevenir a infecção coletiva.


OUTRORA: Trabalhando nessa mesma ideia, nessa mesma linha que a senhora estava falando, a gente pesquisou sua trajetória e vimos que a senhora tem ligação com a UERJ, é hoje professora de enfermagem da UERJ. É uma faculdade muito bem vista na área da saúde, por conta do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Nossa segunda pergunta, ligando com primeira, é saber como a senhora encara a importância do diálogo da ciência com a população para deixar essa ideia de negacionismo.


PRÓ-REITORA LUZIA ARAÚJO: Então, aumentar o diálogo com a sociedade é uma questão de sobrevivência para a ciência. Isso foi dito, também, por Massarini e Araripe. Acompanhamos as notícias acerca do contingenciamento de 42% no orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação, ainda no ano passado, quando ambos estavam juntos. Tão grave quanto a redução drástica de recursos para esse ministério é o status dado ao setor da ciência. Hoje, a sociedade de fato não vislumbra essa importância da ciência. Ela acredita, por vezes, mais na informação que recebe do WhatsApp, que nem sabe quem ou porque mandou, do que aquilo que um cientista ou um pesquisador vem a declarar, por exemplo. E temos recebido vários ataques ao Brasil, não? Recentemente, houve o anúncio de que o Brasil não deveria investir nas Ciências Humanas e Sociais. Isso foi protestado. Mas, a gente precisa entender quais são as Ciências Humanas e Sociais que vão dar base para o pensamento crítico. Como coloquei antes, esse é um dos fatores que precisamos estar trabalhando. O cenário é desesperador, não resta dúvida, mas também isso é uma chamada para a comunidade científica de que não há hora de cruzar os braços. Mais do que nunca, é fundamental realizar ações que aumentem a possibilidade de diálogo entre a comunidade científica e a sociedade. Precisamos nos unir mais e mais com a sociedade. E se eu pensar de uma perspectiva mais ampla no campo da saúde, da educação e do meio ambiente, os cientistas brasileiros têm respondido com um compromisso histórico aos desafios de produzir conhecimento para enfrentamento das desigualdades e iniquidades que atingem a população mais desfavorecida no país. Isso está posto desde Carlos Chagas, desde a Gripe Espanhola... Tudo isso. Os cientistas sempre estiveram presentes, nunca fugiram! Para além de produzir conhecimento, tem havido a preocupação de qual conhecimento a sociedade necessita. Não basta eu entrar no meu laboratório e produzir o conhecimento, eu preciso identificar o que hoje circula no mundo real, o que hoje as comunidades têm necessidade. Uma vez eu tenha buscado essa necessidade do que a comunidade precisa, vou produzir a informação. E vou levar essa informação, esse conhecimento, à sociedade. Ou seja, os estudos precisam considerar os problemas reais. Isso foi observado num estudo que foi publicado por Souza, agora em 2020 nos Cadernos de Saúde Pública, intitulado Cuidar em tempos da COVID-19: lições aprendidas entre a ciência e a sociedade, que utilizou o WhatsApp como meio de acesso à população. Esse WhatsApp foi caracterizado como uma ferramenta de construção participativa visando a promover um empoderamento individual a participação coletiva dos envolvidos neste projeto, que buscava fomentar o engajamento das comunidades com base nas metodologias participativas. Então, eu não tenho que pensar só nas metodologias que são expostas, que é o quadro de giz, o quadro branco para piloto, ou o retroprojetor. Preciso identificar que ferramentas, hoje, a sociedade tem nas mãos. O que ela tem nas mãos é isso. Se a comunidade tem isso, eu preciso chegar até ela por meio do celular. Não tem outra forma de chegar lá. É a partir dessas informações, dos principais questionamentos dos participantes sobre fatores de riscos, formas de transmissão, imunidade ao novo vírus, cuidados relacionados à prevenção, sintomas e tratamento, COVID-19 e vacina, que teve origem a um material educativo que se intitulou Cuidar em tempos de pandemia. Esse material foi produzido e compartilhado com os líderes comunitários e disponibilizado aos respectivos grupos, e ainda disseminados nas suas comunidades como respostas à demanda da própria comunidade, uma comunidade vulnerável. A hora era essa. Precisamos nos mobilizar, mostrar para a sociedade e para os tomadores de decisão que a ciência é, sim, relevante para o desenvolvimento do país. Precisamos nos voltar para a necessidade da população e, assim, direcionar essa produção. Na UERJ eu sou docente, sou professora do Departamento de Fundamentos de Enfermagem desde 1999. Na UFRJ eu sou enfermeira, eu entrei como graduanda em 1985 e em 1989 eu assumi como enfermeira no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. Então, o que eu tenho observado nesse período é que não existe UERJ e não existe UFRJ: a ciência se integra. Nos vários estudos que têm sido produzidos, eu consigo encontrar a UFRJ, a UERJ, a UFF, a ENSP... Então, os cientistas se integram para produzir esse conhecimento, independente de ser UERJ ou UFRJ. Nas unidades próprias da UERJ, também há essa integração: tem a Policlínica Piquet Carneiro e o Hospital Universitário Pedro Ernesto. Foram produzidos diversos protocolos em parceria com o HUPE e a Faculdade de Enfermagem. Podemos dizer, então, que tivemos vários problemas naquela época que as informações confiáveis não chegavam na sociedade – e assim como as informações não chegavam à sociedade, também não chegavam aos profissionais de saúde. Se vocês observarem, no início da pandemia tinha um alto nível de infecção pelo coronavírus, e tinha um alto índice de óbito. Hoje, meu risco de infecção no Brasil não caiu, ele permanece alto, acima de mim. Mas, reduziu o índice de óbito. Isso significa que os cientistas já conseguiram produzir conhecimento de como abordar o paciente portador da COVID-19. Então, tínhamos dois desafios: um, produzir conhecimento para os próprios profissionais de saúde, e era uma via de mão dupla, à medida que cuidávamos do desenvolvimento do profissional, o profissional contribuía para o atendimento do paciente, e ainda nos ajudava a capacitar a formar os nossos alunos. Isso tem acontecido tanto na UFRJ como na UERJ, das quais tenho acompanhado esse movimento. As duas instituições têm sido responsáveis pela produção de grandes números de materiais voltados para a sociedade, e precisamos compreender o profissional de saúde como parte da população. Para nós, profissionais de saúde, também faltava essa informação. Foram produzidos materiais que tratavam de condições específicas de como atuar com idosos, crianças com COVID-19; divulgamos em conjunto várias videoaulas voltadas ao treinamento do profissional de saúde. Além dessas questões específicas, eu preciso direcionar a produção da ciência, do conhecimento, para tratar o impacto do afastamento social e da pandemia. Ora, eu tinha, além do adoecimento do corpo, a pessoa adoecida pela COVID-19, toda a consequência que esse afastamento, que esse distanciamento, da COVID-19 impunha, que é a questão da saúde mental. Então, essa já foi uma consequência da COVID-19 que os cientistas precisaram tratar também.


OUTRORA: A terceira pergunta é sobre o contexto da desigualdade no Brasil nessa epidemia. A última pesquisa do Painel Unificador COVID-19 nas Favelas apontou que mais de 1500 moradores de comunidades cariocas morreram de coronavírus. Queríamos saber como a senhora enxerga, através da sua vivência pessoal e profissional, esse impacto da desigualdade socioeconômica carioca para essa dificuldade de controlar o vírus.


PRÓ-REITORA LUZIA ARAÚJO: A pandemia causada pela COVID-19 trouxe à tona o impacto do enfraquecimento das políticas sociais. Ela tem revelado desigualdades raciais. Ela chegou no país em março, como vocês viram, com viajantes da classe média alta, pessoas que foram ao exterior e chegaram ao Brasil infectados. O vírus se disseminou ali pela classe média alta, mas ao longo do curso dessa pandemia ela foi atingindo a população mais vulnerável, que hoje é a população negra. De acordo com a ONU, a COVID-19 escancarou a discriminação racial no Brasil. O impacto do vírus é desproporcional. Os afrobrasileiros em São Paulo têm mais chances de morrer de coronavírus do que brancos. Jussara Angelo explica que em decorrência da complexidade de se obter dados e visibilidade em uma escala mais detalhada da magnitude da COVID-19 nas favelas cariocas, nós não temos informações. Não há hoje dados da própria comunidade definindo quantas pessoas daquele local contraíram o coronavírus. Também ainda a dificuldade da produção da informação raça-cor nesses estudos, o que dificulta a análise desses dados na criação de uma política pública que possa dar assistência a essa parcela mais vulnerável. Uma análise publicada em forma de ensaio científico nos Cadernos de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, que foi assinada por pesquisadores da UERJ e também da Fiocruz, diz que a desigualdade de acesso a direitos básicos como saúde, saneamento e trabalho, tornou a população negra e periférica mais vulnerável a pandemia. Isso veio a desmentir a ideia inicial de que as consequências da doença seriam igualmente sentidas por toda a sociedade. Essa hipótese cai por terra. Quem sente mais é a população pobre, preta, da periferia e da comunidade. A realidade da classe trabalhadora de baixa renda, que é majoritariamente negra e moradora de espaços marginalizados, mostra que são predominantemente trabalhadores precarizados que não têm o privilégio de ficar em casa. Como o motoboy vai trabalhar remotamente? Quando essa pessoa não tem essa possibilidade de ficar em casa, há superlotamento dos transportes públicos O primeiro boletim sócio epidemiológico da COVID-19 nas favelas relacionou o baixo número de casos e óbitos registrados nos bairros com a alta concentração de favelas, porque nesses lugares não se tem os dados estatísticos para mostrar quem está infectado. Há uma baixa incidência da doença por conta da dificuldade de se obter esses dados. E também se alertou o fato de negros serem mais expressivos entre óbitos do que entre hospitalização. Então, quando eu faço levantamento do número de negros hospitalizados esse número é pequeno, mas quando se observa o número de óbitos da COVID-19, a estatística é muito maior, ou seja, negros não chegam ao hospital. Eles morrem antes de conseguir o atendimento no Sistema Único de Saúde. Esse estudo vai dizer ainda que existe um alto percentual de ausência de registro de cor e raça nos casos confirmados e óbito por COVID-19, e essa ausência desses dados revela o racismo estrutural presentes nas instituições. Isso impede que vejamos verdadeiramente a magnitude do problema para a população negra, e ainda nos impede de traçar políticas que vão de encontro com essas necessidades. A precarização da saúde pública se tornava evidente com a falta de leito destinado a COVID-19, inclusive a suspensão dos demais atendimentos em detrimento do atendimento da COVID-19, que afetou por bastante tempo os pacientes oncológicos, renal crônicos, diabéticos, hipertensos, que deixaram de ser atendidos em detrimento da demanda da COVID-19. Não havia escapatória, ou você morria com o novo vírus ou morria por outras doenças crônicas. Diariamente antes da pandemia, nós observamos notícias nos meios de comunicação sobre os problemas enfrentados pela população na dificuldade de acesso, carência de medicamentos, filas enormes e carência de leitos de CTI. Com a chegada do vírus, esse problema foi ainda mais acentuado. Uma crítica que eu faço é a utilização de equipamentos e verbas nos hospitais de campanha. Por que não são alocados nos hospitais públicos precarizados que já tínhamos? Os recursos não foram utilizados somente para investir em equipamentos, em pessoal, treinamento, ainda precisou se onerar ainda mais o custo construindo hospitais de campanha que não foram sequer concluídos e hoje estão fechados. O que a gente observou é que a garantia de recursos para a prevenção à COVID-19 foi pouco observada na garantia de testes para a sociedade, no cuidado com a subnotificação, ora, como vou identificar a melhor política se eu não sei quantos casos? Hoje só se consegue testar as pessoas que chegam graves ao hospital. Precisa chegar em uma unidade de saúde e explicar que as manifestações clínicas condizem com os sintomas de COVID-19, mas na realidade o teste em massa não acontece. O Rio de Janeiro foi um dos epicentros da pandemia e tem apresentado uma alta taxa de letalidade, sobretudo entre pobres e negros. A atuação dos poderes públicos levam a uma naturalização das mortes, o que reforça o que Mbembe fala de Necropolítica de Estado. Qual a importância dessas mortes para nós? Hoje o preto morre de violência e ainda pode se dizer que morre mais por conta da COVID-19. A gente observa a ausência de políticas públicas de urbanização de favela nos últimos anos que possam atender às reais necessidades desses moradores, assim como oferta de serviços de proteção e cuidado com a COVID-19, que se mostra crescente entre os moradores das favelas. Cientes desses fatos, as populações das periferias e favelas enxergaram a necessidade de criação de novas formas de resistência, incluindo em seu plano de sobrevivência com a criação de redes de apoio. Quer dizer, aquilo que ela não consegue por políticas públicas a própria comunidade precisou se unir de forma coletiva para produzir. As redes de troca e apoio configuram a solidariedade. É desse entendimento que precisamos para nos unir e vencer. Se não existir solidariedade, não iremos vencer a pandemia. Esses espaços são importantes para o enfrentamento da COVID-19 e da pobreza que advém de um processo histórico, que já existia antes da pandemia. O esforço das favelas se inicia com os comunicadores comunitários para trazer informações sobre o coronavírus para dentro das favelas, tendo em vista o desconhecimento do vírus, a elitização dos meios de comunicação em geral e a profusão das fakes news, o que foi um grande desafio para essas novas figuras que residiam nesses próprios locais. Além disso, foi preciso muita criatividade dos comunicadores para fazer com que essa informações chegasse claramente aos moradores. Foram usados portais de informação, grupo de WhatsApp, caminhões de som, redes sociais, cartazes e o boca a boca, de porta em porta. Em algumas favelas foram pintados os números de infectados e mortos nos muros para que a população pudesse acompanhar o crescimento da pandemia. A questão da subnotificação também foi algo constante, segundo o presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho, Leonardo Pimentel. A corda bamba arrebentou mesmo para o lado mais fraco, para quem está na ponta. O problema da subnotificação estimulou experiências que foram inovadoras, como o Painel Unificador COVID-19 nas Favelas, criado por uma rede autônoma de movimentos sociais no dia 06 de julho de 2020. Essa foi uma iniciativa colaborativa com o apoio técnico da Fiocruz que tinha o objetivo de apoiar essas pessoas. Outra questão que me preocupa é a efetividade das medidas de isolamento social, mundialmente praticado em relação ao adensamento populacional, tendo em vista a precariedade desses domicílios ocupados. Como fazer distanciamento social em uma casa de dois cômodos e que moram um grande número de pessoas? Como higienizar as mãos se falta água? Precisa de dinheiro para comprar máscara e álcool em gel e álcool 70, que são fundamentais para a prevenção da COVID-19.


OUTRORA: A próxima pergunta também já foi tocada, mas de alguma forma se complementa. Durante os últimos meses, estava sendo divulgado nas redes sociais uma tabela que mostra a taxa de contágio. Se o indivíduo fosse para a academia tinha um risco, se fosse para o restaurante tinha outro nível de risco etc. Em um país, como já dissemos, marcado pela desigualdade social, o isolamento também foi marcado por essa disparidade. Não há como fazer isolamento se não há condições básicas para se manter em casa. Diante disso, como enfermeira, quais seriam seus pensamentos mais urgentes para essa pandemia? Nós sabemos que não há nenhuma solução mágica para esse momento, mas considerando esse fator da disparidade social, que medida podemos tomar para prevenir esse contágio? O isolamento social seria de fato utópico? O que se poderia pensar como alternativa de prevenção?


PRÓ-REITORA LUZIA ARAÚJO: As principais medidas de prevenção que têm sido divulgadas são o distanciamento social e o uso de máscara, além da utilização de álcool em gel. Mas, para a gente falar em prevenção é preciso primeiro pensar que o conhecimento precisa chegar a todos. Se não houver o conhecimento de como se coloca ou retira a máscara, acaba se colocando a mão contaminada na máscara. Ainda existe necessidade de definição de políticas públicas que tratam os velhos problemas e os inter-relacionam. O direito à moradia e o direito à saúde no comprimento às medidas de prevenção. Vivemos em um espaço urbano que é desigual. Nas áreas em que há pobreza urbana mais acentuada, o número de casos de coronavírus avança rapidamente. Já vimos que esses espaços não contam com políticas públicas de qualidade, que dêem suporte e proteção coletiva. As condições de vida da população dificultam a adoção de estratégias individuais de prevenção, como o isolamento e distanciamento social. É preciso que haja investimento nas políticas sociais, que infelizmente não são de curto prazo. Hoje acompanhamos o maior sofrimento de pessoas em situação de vulnerabilidade. E não, o isolamento não é utópico. A experiência estrangeira mostra que as medidas de isolamento e restrição quando adotadas bem no início da pandemia funcionaram para a contenção da disseminação da doença. Quando cumpridas à risca pela população, são eficazes em reduzir a velocidade de contágio e isso permitiu evitar um colapso nos sistemas de saúde. Um estudo que comparou os efeitos do distanciamento social sobre as curvas de mortalidade da COVID-19 e os respectivos sistemas de saúde em quatro países envolvendo a Itália, Espanha, Estados Unidos e Brasil, que já foram epicentros da pandemia, apontaram que no Brasil a tendência da ascensão da curva de mortalidade não melhorou com o distanciamento social como aconteceu nos outros países. Então, isso mostrou que o distanciamento social por si só não foi suficiente para reverter o processo de multiplicação da doença. Então, não é utopia falar em distanciamento social, mas é preciso traçar políticas públicas para que se garanta que uma comunidade vulnerável consiga cumprir esse distanciamento. O Brasil tem uma diferença crucial em relação aos outros países, que é a desigualdade; 40% da população está na informalidade, o que não dá condições para que essas pessoas se mantenham em casa sem ganhar dinheiro. Lojas fecharam e precisaram reabrir. Para os especialistas, esse é o maior desafio imposto às autoridades brasileiras no enfrentamento à pandemia. O direito à moradia digna deixa de ser uma demanda apenas da população vulnerável e passa a ser uma demanda coletiva. Enquanto não se cuidar das favelas, não se cuida das demais parcelas da população. Os serviços essenciais como farmácia, entregadores, supermercados, entre muitos, são operações nacionalizadas por pessoas que residem em favelas e que dependem de transporte público para se locomover; de modo que se a quarentena representa um risco de contaminação para tais profissionais, esse risco é estendido a todos que pertencem a sociedade. O direito à saúde se encontra integrado no direito à moradia. Enquanto houver pessoas residindo em habitações precárias, sem acesso a serviços básicos de natureza fundamental para a promoção da dignidade humana, não será possível garantir o direito à saúde, nem dentro e nem fora dos limites socioespaciais das favelas. Não é possível pensar em medidas pontuais para a prevenção da COVID-19 desassociando a saúde da população em situação de rua, por exemplo, pessoas que sequer tem água para higienizar as mãos. Para ficar em casa, para cumprir um afastamento social, é preciso ter casa e viver harmoniosamente nesse ambiente. Sabemos que a pandemia vem acentuado os casos de violência doméstica; um assunto sério em demasia e que vem acontecendo frequentemente. O ápice dessa violência é o feminicídio, que possui um número de casos exasperado durante a pandemia do coronavírus. Um estudo foi realizado com Silva e Meira refletiu sobre a problemática histórica da violência que é praticada contra o gênero feminino e suas representações pela ótica da pandemia. A principal medida profilática eficaz contra o coronavírus é o isolamento social, no entanto, nem sempre o local da residência se faz um ambiente seguro para a mulher, haja visto que nesse espaço essas mulheres possuem maior contato com seu agressor e sem chance de acesso às delegacias especializadas e um contato menor com outras pessoas que poderiam ajudá-las e orientá-las sobre quais recursos seguir. Em relação a tabela, a mesma não dá conta de avaliar as principais atividades da vida diária das populações mais vulneráveis. Ela inicia com as atividades com atividades como abrir correspondência, abastecer, comprar comida para viagem, jogar tênis e acampar como menor risco e conclui como comer em buffet, academias, parques de diversões, cinemas, cultos religiosos, eventos e ainda o bar. Ora, a que parte da população cabe nessas atividades? De qual população estão falando? Não é a população vulnerável.


OUTRORA: Com certeza. Achamos essa uma questão importante a ser levantada, de quem estamos falando nesses espaços específicos. Bom, logo no início da pandemia, ainda em abril, um estudo do Conselho Federal de Enfermagem, o Cofen, divulgou um número alto sobre os profissionais de saúde afastados por terem sido contaminados pela COVID 19. Esse balanço divulgou um aumento de quase dezoito vezes em um mês, estando na linha de frente, como você pensa ser possível lidar emocionalmente com esse grande risco de contágio diário a todo momento?


PRÓ-REITORA LUZIA ARAÚJO: O papel da enfermagem é cuidar do outro. Ele zela pela saúde do paciente, um acolhimento e humanização. Além do aspecto do adoecimento, essa equipe também deve estar preparada em como lidar com os familiares e acompanhantes. Isso a gente viu muito nas redes, as denúncias de acompanhantes e familiares que denunciavam uma falta de acolhimento, a falta de informações dos profissionais de saúde sobre as condições do seu ente querido. E a enfermagem se distribui em classes, tem o enfermeiro, o técnico e o auxiliar, que podem estar se distribuindo em diversas áreas hospitalares e até fora. Então, o enfermeiro pertence ao mundo e ele tem competência para assumir diversas responsabilidades. No período da pandemia esses espaços voltados para o atendimento de pacientes da COVID-19 foi dividido em espaço para paciente destinado a COVIDe espaço para pacientes que não eram portadores da doença, sem que, com isso, os profissionais fora de área dos pacientes com COVID pudessem estar livre do atendimento a eles, por que no momento em que se estava lá cuidando do paciente não COVID, o profissional poderia, na verdade, estar lidando com um assintomático e iniciaria a transmissão nesse momento. E houve casos disso. O que leva os profissionais, a todo momento, independente da ala, a estar em alto risco de adoecimento e mesmo de morte. O Conselho Internacional de Enfermagem, além desse estudo que foi apresentado por vocês em abril, notificou que mil e quinhentas enfermeiras morreram por conta da COVID-19 em quarenta e quatro países. Estima-se que os profissionais de saúde que sofreram pela COVID no mundo podem chegar a mais de vinte mil pessoas. O Brasil é líder mundial de mortes de profissionais de enfermagem pela COVID, tendo seu maior índice no sudeste, com quase cinquenta por cento de óbitos desses profissionais. Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Amazonas são os estados que mais perderam enfermeiros pela COVID-19. Esses óbitos são equivalentes aos óbitos dos profissionais de saúde que ocorreram durante a primeira guerra mundial, o que demonstra a nossa impotência ante a possibilidade de se evitar essas mortes. Entre as várias causas possíveis para esse aumento de mortes pela COVID no meio da saúde, de acordo com o presidente da Cofen, estão a falta de treinamento para lidar com o coronavírus, a falta de produção e divulgação de conhecimento sobre a doença, a escassez e baixa qualidade dos equipamentos de proteção e prevenção ofertados aos médicos e enfermeiros, a exposição de profissionais que pertencem ao grupo de risco e a sobrecarga de trabalho que resulta em cansaço físico e emocional, aumentando consideravelmente o risco de infecção e contágio. Precisamos passar de palavras calorosas para ação. A enfermagem tem recebido vários elogios e comoções, só que a gente precisa passar desse patamar para a ação concreta. Os elogios não vão garantir por si só a sobrevivência dos profissionais de saúde. A economia não vai se recuperar se não cuidarmos e mantivermos os enfermeiros trabalhando e capazes de cuidar da população. A enfermagem também é vulnerável, não é só a falta de UTI que tem angustiado os profissionais, a carga horária desgastante e a manutenção desses profissionais de grupo de risco são alarmantes. Agora, a sobrecarga da enfermagem é uma questão crônica, que não surge com a COVID-19, mas foi escancarado pela doença. A resposta dessa questão, para alguns autores, acredito que está nas desigualdades sociais, é preciso procurar esse elemento nas condições de trabalho, nas características da força de trabalho, as desigualdades raciais e de gênero. Os profissionais de enfermagem fazem parte do grupo mais afetado, expostos ao grupo de contágio, à dor emocional, que afeta consideravelmente a saúde mental. A OMS observa que os trabalhadores nessa situação apresentam altos índices de ansiedade e estresse, acrescidos do risco de adoecer mentalmente e fisicamente pela exaustão. Sentimentos de tristeza e tensão são normais em qualquer ser humano exposto ao contexto de pandemia, e há abundantes situações dramáticas que os pacientes carregam consigo. A cada história que os pacientes, familiares ou amigos carregam, nós também sofremos. Desse modo, fica evidente que a capacitação dos profissionais de saúde em lidar com o corpo do paciente não nos capacita para dar conta de superar o sofrimento que tem permeado esse ambiente nesse período. E a gente tem reconhecido a própria impotência diante do sofrimento em lidar com a dor e a morte do outro. E o nosso treinamento não contempla isso. Assim como também não contempla o cuidado com os desdobramentos psíquicos advindos dessa experiência, junto aos pacientes. Em relação à saúde psíquica e mental, o Cofen determinou a Comissão Nacional de Enfermagem e Saúde Mental para efetivar o atendimento aos profissionais que se encontram na linha de frente da pandemia do coronavírus, enfermeiros, auxiliares e técnicos que precisam ser acolhidos e cuidados. Quando a gente fala da saúde mental do trabalhador na área de saúde, a gente pode acrescentar o estresse referente ao cuidar de pessoas em situação de fragilidade, e ainda podemos imaginar que o profissional da área de terapia intensiva tem um estresse muito maior, pois além dos protocolos rígidos de segurança, estão frente ao paciente grave da COVID-19 e a possibilidade de morte iminente. Os sentimentos mais encontrados por esses profissionais são o medo de contágio e de contagiar os seus familiares. A gente disponibilizou na UFRJ alojamento no CPOR de Bom Sucesso para os nossos profissionais que tenham medo de transmitir a doença para a família. A gente não sabe mais como vai ser o nosso amanhã, a mudança total da nossa rotina, o isolamento, a diferenciação de outros membros da equipe por trabalhar em setor de risco, os conflitos entre os profissionais por conta da grave complexidade da COVID-19, a tristeza ao lidar com os óbitos, a falta de esperança. O que será do amanhã? Outras questões relatadas foram a dificuldade para dormir, o cansaço extremo, devido aos plantões excessivos para números reduzidos de profissionais dentro dos hospitais. É importante para o profissional saber que ele não está só nesse momento, o autocuidado é importante para que ele possa preservar a própria saúde e ser capaz de cuidar de outros pacientes. A UFRJ também disponibiliza um grupo de atendimento para esses profissionais.



OUTRORA: Agora a gente pode passar para nossa última pergunta: Atuando como Pró-reitora, servidora técnico-administrativa e professora, quais os pensamentos que você encara como mais urgentes no que diz respeito às experiências da pandemia? A gente falou aqui a respeito da desigualdade social, que a pandemia escancara, não só a desigualdade social e econômica, mas também a própria questão da enfermagem, a vida desses profissionais da saúde. Em vista disso tudo que foi comentado aqui, o que você encara como mais urgente de pensar dessa experiência?


PRÓ-REITORA LUZIA ARAÚJO: A gente está vivendo, na atualidade, um momento de intenso desafio do ponto de vista da saúde. Vimos, anteriormente, que uma das políticas que precisa ser traçada é a da testagem em massa, para que se possa controlar o número de casos, e, aí, tratar as notificações, e não nos depararmos com a situação da sub-notificação. Mas, infelizmente, hoje a UFRJ ainda não disponibiliza a testagem em massa para toda comunidade universitária, e quando eu digo a testagem em massa, não significa apenas a testagem para as pessoas que são sintomáticas. Deveria ter teste para todo servidor que está em atividade presencial. Como ele vai e vem muitas vezes pelo transporte público, o risco dele se infectar é grande. A gente ainda tá tímido nessa profissão, a gente consegue atender todo servidor que desenvolve manifestação clínica mas a testagem como forma de controle a gente ainda não tem. A primeira informação que a gente tem no site “coronavírus”, que apresenta as atividades desenvolvidas pela UFRJ no combate ao coronavírus é: “A pandemia ainda não acabou”. Então essa é a principal informação. Se a pandemia não acabou, logo sabemos que precisamos manter todos os cuidados já definidos, como o distanciamento social, e esse distanciamento é possibilitado pelo trabalho remoto, as organizações de escalas, o controle do distanciamento entre pessoas no ambiente de trabalho, a orientação e supervisão para o uso de máscaras, além da disponibilização de condições para que o profissional possa higienizar suas mãos, por exemplo. Vocês como alunas da universidade sabem que não temos instaladas pias nos corredores, as nossas pias estão nos banheiros, e o banheiro é um espaço fechado. Como é que eu vou garantir essa entrada e saída dos banheiros para garantir a higienização das mãos? E a gente ainda pode identificar que nem todo banheiro possui água, sabão e papel, para que a gente possa higienizar as mãos. É importante também que tenhamos um dispensador de álcool em gel, além de outras medidas que a gente já trabalhou. O plano de contingenciamento para a pandemia tem sido frequentemente atualizado, e direciona as condutas nas diversas áreas da UFRJ. Temos observado, os pesquisadores da UFRJ, o aumento do número de casos da COVID-19, o que mostra que estamos longe de nos livrarmos dessa suposta onda, que nunca termina. Nesse momento, é preciso pensar mais do que nunca, que o que poderá salvar vidas é o conhecimento produzido pela ciência, e aí a gente volta lá na história do negacionismo. Tudo que é aquilo que a ciência produziu, a gente precisa embutir. As possíveis soluções encontradas e divulgadas, e a preocupação com o outro precisam prevalecer. E, acima de tudo, a solidariedade, por que não adianta eu me cuidar se eu não penso no meu colega de trabalho, que no momento em que ele se infectar, eu também serei infectado. A gente vive em um tempo em que abraços apertados precisam ser substituídos por um outro tipo de união, e que são laços invisíveis. Hoje eu não posso mais apertar a mão. Sabe aquele abraço gostoso? Beijar? Como a gente gostava de beijar as pessoas. Brasileiro gosta de dar dois beijinhos, três beijinhos, dar um monte de abraço, e agora a gente não pode mais fazer isso. Em meio à pandemia do Coronavírus, como enfermeira, servidora, técnico-administrativa da educação e ainda pró-reitora e docente, cuja missão primária é estar próximo e cuidar das pessoas, e aí essas pessoas são tanto profissionais como alunos, estando eles distantes ou não, estamos em trabalho remoto mas a minha preocupação precisa ser também com o profissional que está em sua casa. O que antes tentávamos fazer testando o próximo, hoje utilizamos das tecnologias para garantir o desenvolvimento das pessoas e esse cuidado. Nesse momento é crucial que entendamos que o servidor, colaborador, está exercendo sua função em casa não porque quer. Ninguém está trabalhando em casa porque quer, gastando sua luz, a sua internet, tendo a sua casa invadida, porque as nossas câmeras são uma invasão à nossa privacidade. Estamos trabalhando dessa forma porque estamos sendo obrigados, pelo bom senso e pela consciência de responsabilidade. Estamos trabalhando em casa, e isso não é tão simples quanto parece, o estresse e a ansiedade surgem constantemente e fortemente nesse cenário, onde a escolha não é de ninguém, mas o compromisso é de todos. Então, no início da pandemia, a gente começou a levantar hipóteses de que seria bem mais tranquilo para o profissional atuar em casa, a questão do estresse, do trânsito, de pegar o ônibus, de chegar na faculdade só três horas depois, da hora de chegar. Opa! Acabou isso tudo, não tem mais hora de chegar, eu não preciso pegar ônibus cheio, só que outras situações acabam culminando para que esse profissional esteja com nível acentuado de estresse e ansiedade. Nesse cenário, os sentimentos que se sobrepõem são a angústia, a insegurança e as incertezas. E com isso a gente vê a saúde mental prejudicada, e, acima de tudo, o que eu penso é que a gente precisa ter empatia, a gente precisa se colocar no lugar do outro, o que não deve ser difícil, porque todos estamos no mesmo barco, todos estamos vivendo a mesma pandemia. É preciso pensar e refletir sobre as funções que todos nós exercemos presencialmente, e que agora estamos exercendo em casa, para compreender e já estar pronto para resolvermos possíveis falhas, nessas funções, devido ao trabalho home office. Uma das principais falhas que temos procurado trabalhar na pró-reitoria de pessoal são as questões relacionadas à comunicação, os problemas de comunicação são comuns, e são agravados, principalmente, porque estamos trabalhando de forma remota. Porque não é possível que haja a comunicação de forma pessoal. Então a gente entende que é preciso manter a comunicação reforçada, utilizando-se para isso canais como o Whatsapp, a gente já viu que ele é um meio adequado para isso, pesquisas já mostraram isso, é um meio que atende a grande parte da população, a comunicação por email, a reunião online, contato por telefone. É preciso utilizar tudo para manter a todos atualizados com o que está acontecendo na imprensa, com o que está acontecendo na UFRJ diariamente. Além de informar sobre o que acontece no mundo, eu preciso garantir as informações que acontecem no cotidiano. Então a gente precisa incentivar chamadas como essa, que a gente possa se ver. Incentivar chamadas de vídeo, porque assim eu consigo me sentir mais próximo das pessoas, além de diminuir possíveis falhas na comunicação. Uma das partes mais difíceis do isolamento é ficar longe de todos né, amigos, família e também dos colegas de trabalho, esse foi um outro problema. A gente imaginava que a gente só não suportaria estar longe dos nossos familiares, mas hoje a gente já entende que estar distante dos nossos amigos, do convívio social e desses colegas de trabalho, também tem repercutido na nossa saúde mental. Então a gente precisa aproveitar a existência da tecnologia e as artimanhas que ela tem possibilitado para amenizar essa distância entre nós. Precisamos atualizar a equipe sobre a pandemia. Não é para causar pânico que eu vou falar da incidência da COVID, mas exatamente para diminuí-lo. A gente precisa mostrar que a universidade está ciente da situação, está bem informada e acompanhando a situação, e que isso possa passar segurança, um grande sentimento de segurança à comunidade, que é tão necessário nesse momento. É também preciso estabelecer escala de trabalho, deixando claro os horários que cada pessoa deve estar disponível, mesmo estando em casa. O fato de eu estar trabalhando de forma remota, não significa que eu tenha hora de pegar e não tenha hora de largar. Então os nossos os nossos colaboradores, os nossos servidores, os nossos profissionais todos, precisam ter essa clareza de que horário que eles iniciam o trabalho e o horário que esse trabalho deve ser concluído, para que não haja confusão entre o horário de descanso e o horário de produção das atividades. É preciso investir no desenvolvimento do profissional. Isso pode ser possibilitado pelas tecnologias, cursos de capacitação online. Isso pode sinalizar o quanto esses profissionais são importantes, à medida que a gente pensa sempre nesse profissional e na necessidade de desenvolvimento desse profissional. Além de ser, claro, esses cursos, uma possibilidade de investimento a longo prazo para a universidade. Precisamos continuar ouvindo a cada profissional, mesmo de longe. Pedir opinião, perguntar, perguntar como ele está e se precisa de algo. É preciso ao máximo tentar se tornar presente, mesmo estando distante. Homenagear o profissional, apreciar, reconhecer o trabalho que ele tem executado em meio a esse cenário de instabilidade. Claro que é importante construir críticas também, mas não deixar de lado os elogios. Agora, mais do que nunca, é o momento dos elogios e dos reconhecimentos. Todos precisam ser lembrados da importância que tem para empresa, e também para o bem comum, ser lembrados para a UFRJ. Qual a importância de cada um para a universidade? Qual a importância de que cada um permaneça trabalhando em suas residências? É preciso saber, que antes de cuidar de cada profissional nosso, também precisamos cuidar de nós, e esse é um alerta para todos os nossos diretores, para todos os nossos decanos, que às vezes a gente esquece do próprio cuidado. O gerenciamento da própria saúde mental é fundamental para o bem estar, para o meu bem estar e também para o bem estar do outro. Hoje a coordenação de política de saúde do trabalhador, pertencente à PR4, tem também oferecido esse atendimento junto com o DEA. Na página da UFRJ, sobre a COVID, a gente tem o nosso GT pós pandemia, que traça todas as atividades que a gente tem dado prioridade nesse momento, que são as medidas de biossegurança, a caracterização das atividades que são necessárias para a realização de forma presencial, como é que deve ser a questão do trabalho remoto, entre outras questões.



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