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A importância da alteridade dos sujeitos para o debate público de igualdade



Hoje (29/01), Dia da Visibilidade Trans, relembramos parte da entrevista de Dani Balbi, candidata à Deputada Estadual do RJ pelo PCdoB nas eleições de 2018, concedida para a segunda edição da Revista Outrora.


Dani Balbi é carioca, tem 29 anos, professora de História da rede pública do estado, é conhecida por sua militância nas pautas sobre raça, gênero e educação. Descrever Dani é, como o próprio ditado diz, limitante. Sujeito que transcende qualquer categorização, ela nos apresenta as infinitas possibilidades que uma mulher negra, trans, professora e ativista pode assumir nesse mundo. Na entrevista dada à Outrora, Dani aborda a importância do debate de questões como racismo para a promoção de um país mais equânime. A educação e a literatura, constantes da vida da entrevistada, conduzem a prática de inclusão e resgate de uma identidade negra, há muito silenciada, defendidas por ela. Compreender a importância da alteridade dos sujeitos para o debate público de igualdade seja, talvez, a solução para os problemas presentes, assim como um dos pontos norteadores da entrevista a seguir.


Dani, um dos vetores que orientam a sua militância diz respeito às pautas sobre a educação pública - isso ficou muito claro em sua campanha para deputada estadual. Tendo isso em vista e pensando o contexto social da escola pública carioca hoje, como você se propõe a elaborar com seus alunos uma educação antirracista? Além disso, enquanto educadora, como é que você encara essa posição se pensarmos no seu lugar como propositora de remodelamentos das subjetividades de meninas e meninos, em sua maioria negras e negros?


Dani: Na escola estadual em que dou aula, temos tensionado muito o conhecimento acadêmico e o conhecimento construído para ser aplicado no ensino médio com o intuito de pensar novas formas de falar, na verdade não novas, formas silenciadas pelo preconceito linguístico que busca um padrão inalcançável. O preconceito com a variação da norma culta é também um instrumento de racismo. Além disso, tento recuperar a história do povo africano e sua mitologia ao falar de literatura e dos primeiros escritos. Começamos a pensar em sala a respeito dos esquemas imagéticos africanos e de sua mitologia que foram trazidos pelos povos escravizados ao Brasil e que permanecem presentes nas religiões de matrizes africanas até hoje. Isso causa um estranhamento porque os alunos têm dificuldades de se reconhecerem como sujeitos, donos e protagonistas da história em sua negritude, em sua situação de classe. Sempre que eu trato, por exemplo, de mitologias de língua Iorubá, que foram matrizes não depositárias das matrizes gregas, mas que contribuíram para balizar as lendas e a literatura ocidental, os alunos têm dificuldade de aceitar, principalmente alguns de religiões neopentecostais mais fundamentalistas. Quando começamos a tratar de literatura, antes mesmo de entrar na historiografia da literatura, pensando o modelo literário em si, eu dei Ponciá Vicêncio, da Conceição Evaristo, para pensarmos os procedimentos. Acho que essas práticas que vamos elaborando são importantes para pensarmos não só a morfologia, mas também a estrutura da língua e o racismo. Vejo com muita preocupação a liberdade de cátedra do professor nesses tempos de autoritarismo e fascismo em que a escola é ameaçada diretamente.


Quanto aos alunos que vem de religiões neopentecostais fundamentalistas, e que enxergam na igreja e na sua religião as únicas formas de se sentirem livres e representados, como você trabalha com o desafio que é lidar com esse grupo em sala?


Dani: Eu tendo a crer, talvez possa ser até um pouco de soberba militante de esquerda, mas de certa maneira isso se comprova, que as religiões neopentecostais de caráter fundamentalista ocuparam um lugar que o Estado nunca ocupou, que é um lugar de identificação, de senso de comunidade, de redenção e de correção. Existe uma ideia de que você está à margem da sociedade, como se esse lugar fosse naturalmente seu por conta de você ser pobre e preto. Isso é muito presente entre meus alunos. Essas igrejas de certa maneira recolocam os indivíduos tanto do ponto de vista de uma conduta aceitável, quanto de um lugar cheio, de acolhimento, de conversa, de troca, de práticas ritualísticas e de linguagem comuns, além de serem assistenciais. Seria muito soberbo dizer que são assistencialistas, pois possuem programas continuados, de integração ao mercado de trabalho e suprimento alimentar. Você percebe que são redes poderosas que vão construindo comunidades muito sólidas. O problema é que são muito limitadas e preconceituosas. O fundamentalismo exclui outras formas de pensar, muitas vezes caminha para a destruição das diferenças e isso é muito assustador. O desafio é saber entregar redes sólidas que construam o elã de comunidade, mas que não caminhem para a destruição das diferenças. Acho que deveria ser o papel do Estado, novo e revolucionário, assim como da política pública, fazer isso. Mas se não é, nós, da esquerda e dos movimentos progressistas, precisamos de alguma maneira entregar uma alternativa já que caminhamos para a construção desse Estado também.


Pensando o lugar que você ocupa, enquanto sujeito social e intelectual (mulher, transexual, negra, professora, acadêmica, candidata à deputada, militante...), é possível identificar certos avanços em relação à inclusão de determinados setores sociais historicamente postos à margem. Quais são suas perspectivas futuras? Como você avalia essa dualidade “avanço” do ponto de vista da inclusão e dos ganhos, e “recuo” se pensarmos que há inúmeras demandas desses sujeitos marginais que ainda não foram incorporadas. Quais são as ações que poderíamos tomar a fim de reduzir essas disparidades históricas?


Dani: O movimento do liberalismo tem essa dubiedade, ele avança nas liberdades individuais em momentos de estabilidade do capital. Ele permite que essas formas de ser vão se constituindo. Em momentos de crise, isso é posto em questão. Então, no momento seguinte à possibilidade de emergência de novas formas de ser ocupando espaços historicamente dominados por homens cis, hétero, brancos, de classe média ou rica, essas identidades novas são imediatamente colocadas enquanto perseguidas, enquanto provocadoras da crise ou qualquer coisa que precisa ser destruída. Acho que a gente vive esse momento com a ascensão do fascismo, a crise do capital. No mundo inteiro observamos isso e não seria diferente no Brasil, um país que não atravessou e tem dificuldades enormes de atravessar por rupturas. A gente precisa voltar a dialogar com a base, isso é um diagnóstico. A escola é muito central, por isso que ela tem sido perseguida. O trauma da escravidão talvez seja uma elaboração muito hermética, mas a gente desenvolve muito a ideia de que esse trauma existe na construção da relação de mais valia no Brasil. Assim, não se pode falar da condição do trabalhador sem falar do enfrentamento da escravidão. Só que, na maioria das vezes, quando a gente vai fazer o enfrentamento do debate de política pública para confrontar o racismo com ações afirmativas em todos os âmbitos, ainda encontramos dificuldade para pensar e conversar sobre cotas na universidade e no mercado de trabalho, porque a gente vive sob o mito da democracia racial.

O ciclo da social democracia se encerrou. Penso que a história tem esses movimentos cíclicos e é isso. Dessa forma, não existe a possibilidade de se pensar um projeto de inclusão efetivo que vá entregar essa perspectiva pelo consumo. É muito cruel, por exemplo, reduzir o PT com o enunciado de que ele incluiu pelo consumo e entregou à classe média uma possibilidade de ascensão, excluindo todas as tentativas de alargar o espaço da universidade e de fortalecer alguns sistemas públicos que são promotores do bemestar social. O erro foi não ter promovido muitas das reformas estruturantes necessárias.


E como você acha que a sociedade pode se engajar no sentido de atuar nessas reformas?


Dani: A popularização da universidade é muito boa, pois ela é no Brasil um ambiente muito saudável em relação à inclusão. E com sua popularização, o movimento social também se fortaleceu. Mas vejo que a gente aqui esgotou, saturou. Nosso debate é não somente a universidade, os debates acadêmicos, as linhas do feminismo, as linhas de enfrentamento ao racismo, as linhas de pensamento de afirmação LGBT. Claro que a gente precisa avançar, precisa debater muito! Mas, esse é o momento em que acho que já temos condições de sair dos debates acadêmicos - e digo universidade porque ela é metonímica. A gente precisa parar de concentrar nossa atuação no eixo Centro-Zona Sul. O nosso grande desafio é fazer núcleos em lugares em que esse debate não chega e se esforçar para que ele chegue a outras pessoas.


Sobre essa questão da consciência, isso chama muito atenção. Nessas eleições o que a gente esperava é que as pessoas que compõem o grupo da alteridade votariam pela diferença e não foi isso que aconteceu, essas pessoas votaram pelo que elas acreditavam. Me parece que os discursos dos movimentos sociais e acadêmicos, perpassam por uma questão de descrever e acessar as ontologias. A condição do negro, da mulher, da travesti, não são questões ontológicas e esses debates se travaram a partir disso. Utilizando o resultado das eleições como um parâmetro para se observar esse fenômeno, como você acha que que os discursos da academia sobre os sujeitos subalternos podem chegar a uma disputa de consciência efetiva? Em um sentido que utiliza a experiência como fenômeno de não representação desses homens e mulheres na figura do Bolsonaro.


Dani: Olha, eu vou tentar refletir aqui com vocês. O capitalismo atua pela homogeneização e pasteurização também, então quando você reconhece que ser negro no Brasil é uma condição de subalternidade, algo que a gente aprende logo na primeira infância reflete um certo influxo. Por anos antes do debate do orgulho de ser negro e ainda hoje a gente atua pela negação e abnegação, que é o recalque, o alisamento do cabelo,as cirurgias plásticas, a própria miscigenação. Houve muita resistência a miscigenação enquanto projeto eugenista, mas ela também funciona em determinadas camadas. Então eu acho que as travestis, as pessoas do nordeste, as pessoas negras ainda sofrem esse influxo. Acho que essa perseguição de uma ontologia, do núcleo duro do ser, é um processo que a academia e os movimentos de reflexão fizeram com a ideia do que podemos considerar empoderamento. Eles tentaram recuperar essa autodeterminação, essa consciência de si, mas isso foi para muito poucos e isso não é eficaz diante ordem que caminha para a pasteurização da maioria das pessoas. Acho que desafio é achar o consenso e qual o consenso possível? Eu acho que menos pela identidade e mais pela condição, a gente não precisa enquanto movimento de negras e negros selecionar um perfil de pessoa negra que se autodetermina negra e que se organiza então no movimento negro. Isso passa necessariamente por essa autoafirmação e por esse processo de epifania e de encontro consigo. A gente precisa apresentar as condições da negritude da melhor forma possível, para toda a população, sobretudo para a população negra. Da mesma forma com as mulheres transsexuais, não importa, por exemplo, que a gente reverta a “vergonha” de ser transsexual, mas importa que todas nos entendamos que existe uma condição de mulheres transsexuais. A consciência política precisa avançar para o terreno da condição de estar no mundo e não necessariamente a condição de ser.


Para a entrevista completa acesse.

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